Monday, February 28, 2005

Não se arranjará uma distracção qualquer?

O estranho deste vício é que consegue simultaneamente tomar posse de nossa vida e ser como se não existisse, ou pelo menos não se manifestar até ao preciso momento em que decidimos prescindir dele.

O cigarro ritual, que se toma após coisas tão diversas quanto um café, uma refeição, ou aquela coisa boa que vem a seguir ao whisky, só surge à superfície quando decidimos manter o ritual e fazer desaparecer o apêndice fumegante.

Apercebemo-nos assim da quantidade de actos quotidianos que foram, neste processo, e sem que tenhamos percebido muito bem como ou porquê, elevados à qualidade de ritual: beber um café (quatro a oito rituais diários), falar ao telefone com um cliente por mais do que dois minutos (idem), reunir com alguém do escritório durante mais do que trinta segundos (seis a vinte rituais semanais). Quando damos por nós, toda a nossa vida é um manancial de rituais, que se sucedem inexoravelmente, e têm como consequência o gesto assassino: apalpar o contorno dos bolsos em busca do maço de tabaco salvador.

Não se arranjará uma distracção qualquer que substitua de forma graciosa estes rituais?
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Sunday, February 27, 2005

Picos

Vou agora um pouco à rua, beber um café, ver se a loja gourmet a três quarteirões, cuja existência descobri no outro dia, está aberta a esta hora, ver se o ar fresco me faz querer estar fora de casa ou o inverso. Recusei o meu direito de adoentado de ficar um fim-de-semana inteiro no quentinho.

Estou com aquilo que se poderá chamar um pico (de privação de nicotina que, tirando a enorme carga de detalhes e tralha sem interesse, é no fundo o único assunto deste blog).

Tenho sentido uma secura inaudita nos lábios, como se de cieiro se tratasse. Talvez fosse do aquecedor a óleo ligado dias a fio. Abri as janelas. Tudo na mesma. Talvez fosse como tudo o que tenho sentido nestes últimos dias: uma sensação de faltar qualquer coisa, o acto mecânico de sondar os bolsos para descobrir em qual deles está um maço de tabaco.

Vou beber água e tenho que ir beber um café. O café tem sido o meu melhor amigo nos últimos tempos. Vou ter que comprar uma máquina de espresso.
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Saturday, February 26, 2005

A dúvida

Continuo adoentado desde antes do momento zero. Instala-se, no entanto, a dúvida: se por vezes tenho longos períodos (que chegam a atingir os quarenta segundos) sem vontade de fumar é porque me mantenho doente ou... continuo doente porque não tenho nicotina?

Só sei que comi imenso desde o momento tardio em que acordei hoje, depois de ter tentado ganhar terreno à gripe à custa de muito sono, e apercebo-me que na situação onde eu sempre pensei ser mais crítico o cigarrinho — o pós refeição — já me consegui habituar a passar sem ele, ainda que isto implique passar a saír de casa para beber o agora indispensável café.

Isto só se vai tornar realmente dificil quando acabar de tossir os pulmões, e voltar a ter o paladar e o olfacto totalmente funcionais.
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Friday, February 25, 2005

A base científica

Numa sociedade como a nossa as coisas têm que ter uma base científica. Tudo tem uma base científica, até uma boa desculpa — ou, se pensarmos bem, principalmente uma boa desculpa.

Por voltas do destino calhou-me, já lá vão mais do que dez anos, trabalhar na promoção de um produto antitabágico. Um adesivo com nicotina, para praticar o desmame (voilá) da substância aditiva do corpo.

Aí aprendi que, para além de uma lista infindável de sintomas de privação, o corpo — repito, o corpo, e não a tortuosa e volúvel mente — sente a falta da substânciazinha durante seis a oito semanas.

Seis a oito semanas! Só passaram cinco dias.... e eu a achar que daqui a umas horas isto se resolvia
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Adrenalina

Achava que sabia o que era adrenalina. Achava, dizia eu, porque na realidade o que eu pensava ser a adrenalina era o que eu sentia quando acabava um trabalho em cima da hora, começava a negociar um orçamento apercebendo-me que me esqueci de ver os custos antes de saír do escritório ou perguntava as horas a uma mulher linda sem ter ensaiado previamente a deixa seguinte.

Não é adrenalina, é mais simples: é stress. Ou se quisermos usar uma mais nacional e prosaica terminologia... é uma nervoseira do caraças, de quem morre de traça, necessitando de um pauzinho de nicotina para se distraír. Parece que vou ter que recorrer à ervanária.

Nunca mais na vida digo que funciono bem sobre stress. Nem postar, quanto mais o resto.
:-)

Trabalho é trabalho, vício é... vício

Uma das técnicas mais utilizadas - a par do científico desmame - quando se fala de deixar de fumar, é reduzir o vício aos cigarros rituais: a seguir ao almoço, a seguir ao jantar, durante o snooker, entre o whisky e o coiso-e-tal.

O verdadeiro teste para quem deixa de fumar é esse imenso ritual chamado trabalho.

Sentado no gabinete com o meu sócio, apreciando o ritmo a que ele trucida um cigarro a cada dez minutos, atendendo telefonemas, bebendo cafés... já dei por mim dezenas de vezes pondo a mão ao bolso do casaco em busca do maço.

A grande dificuldade surgiu-me cerca das seis da tarde. Depois de concluír uma negociação que se arrastava há meses -- pressinto aliás, que não a deixei prolongar mais devido à carência de nicotina - chegou a altura de marcar simbolicamente o momento.

Cadê o isqueiro. Cadê o maço? Porra... já aguentei mais uns minutos
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Estou a ficar velho

Acho que esta coisa de pela primeira vez na vida tentar realmente deixar de fumar (por mais que tente esquecê-lo, nestas alturas só me consigo lembrar da palavra "desmame") é um sinal não de maturidade, mas de medo da idade.

À medida que a PDI (sigla, só digo que "I" é de Idade) avança, à mínima gripe descobrimos sensações e dores que são como ruídos num carro acabado de chegar da revisão — sempre lá estiveram, mas noutros tempos não teriam merecido atenção suficiente para serem elevados à categoria de problema.

Claro que assim que a saúde volta em força esquecemos tudo isto. Eis outra desculpa tão boa quanto qualquer outra para ter transformado esta curta caminhada num blog. Assim é um pouco mais difícil esquecer.
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Custa muito contar minutos

Tinha razão. O chá teve uma eficácia aproximada de dois minutos e quarenta segundos. Mais segundo, menos segundo, o tempo que demorei a bebê-lo.

Depois disso foi basicamente contar os minutos. Estou com aquela sensação que vou acender um cigarro. Só falta descobrir onde ele anda. Penso nos pulmões. Sinto-os como em pedra, por causa desta maldita gripe (não quero pensar em mais do que isso)

Talvez chá de coca?

Decidi que o chá de coca talvez ajudasse. Tenho a sorte de ter aqui, do genuíno espécime andino, retalhado e triturado na sua forma natural, e embalado com a elegante denominação de "Delice".

Esta infusão de coca talvez resolva a ansiedade nestes próximos dez minutos. Vou experimentar utilizar o PC para um jogo. Embora, depois de coisas que envolvam bebidas alcoólicas, um jogo de computador é provavelmente uma das minhas actividades quotidianas mais carregadas de nicotina.

Claro que o facto do comércio de folha de coca ser ilegal em todos os países do mundo excepto em dois dos principais produtores — não, erraram, Bolívia e Perú — é um mero detalhe que o meu subconsciente chamou ao assunto. Uma associação engraçada entre um vício legal e dispensado, com cumprimentos do ministério das Finanças, em milhares de pontos de venda no País e no estrangeiro, e um outro vício, ilegal, e pago com uns dólares anuais de cada americano para combater a rede de distribuição e com outros tantos dólares (normalmente da mesma alma respeitável e pagadora de impostos) ara o consumo.

Independentemente do raciocínio mirabolante, talvez uma réstea de vício ou crime no trivial acto de beber chá possa contribuir para levar esta sensação de secura, de "falta" que eu não conhecia há 15 anos.

Para tal efeito é um detalhe que a clandestina aquisição dos elegantes saquinhos de 'mate de coca' tenha tido lugar no supermercado com ar mais apresentável que encontrei no centro da acolhedora — e, por padrões extra-europeus, limpa e civilizada, cidade de Cusco.

O que interessa nisto é que tudo são distracções da tentação de fumar. Ou formas de a recordar de novo.

Apercebo-me agora que, pela primeira vez, não tenho o cigarro à vista (escondi-o no final do post anterior).

Thursday, February 24, 2005

Momento zero. Falta-me ar. Preciso de fumo

Momento Zero
Período aprox. de tempo desde o último SG: 70 horas


Comecei este blog porque foi o que me surgiu como natural e como forma de esquecer por um pouco o quão chocante se revela a minha própria dependência da nicotina. Para ser sincero, porque o teclado era a forma mais óbvia de manter as mãos ocupadas antes que um cigarro o fizesse.

Uma gripe sem aviso, sem grandes febres mas altamente agressiva para nariz e pulmões tornou-me perfeitamente incapaz de fumar um único cigarro desde o momento em que me levantei da cama, cedo na terça-feira, até ao momento em que escrevo, nos últimos minutos do dia de quinta feira.

Trazia um cigarro no bolso da camisa, preparado para qualquer imprevisto e, depois de complicadas negociações com a minha consciência, cheguei à conclusão que, nesta primeira fase, deixaria o método científico falar mais alto e adoptaria a técnica do desmame, fumando apenas um único e contado cigarro diário, depois do jantar.

Cheguei ao ponto de imaginar que, ao longo do tempo, poderia passar a fumar um charutinho aqui e ali, nas ocasiões em que o repasto o justificasse. Curiosos os mecanismos do nosso cérebro, que nos levam a criar imagens perfeitas em sítios onde nós temos a perfeita consciência de estar apenas um enorme buraco.

Mente qualquer fumador convicto e efectivamente viciado que descreva o acto de deixar de fumar como algo menos que pura tortura. Há no entanto — e como gostam de nos dizer muitas vezes, utilizando a frase feita, "é isso que nos distingue dos animais" — uma parte racional que me leva a esperar sempre mais uns segundos até pensar na baforada redentora.

A verdade é que, desde que comecei a fumar, fará agora cerca de dezassete anos e três meses, mais mês, menos mês, não terei estado tanto tempo como agora sem pegar num cigarro — ou, para ser fiel à realidade, sem fumar um — e que ocupei mais de cinquenta por cento da minha vida a contaminar os meus pulmões com inúmeras substâncias tóxicas.

Quando me falavam de vícios, eu papagueave sempre, de forma quase automática "fumar é o vício que eu nem TENTO deixar". A verdade é que no presente é-me extremamente desconfortável fumar, pela simples razão que os meus maltratados pulmões de homem com mais dez anos do que tenho tornam efectivamente dolorosa a baforada. Se fosse apanhado na sede do Bloco de Esquerda certamente passaria por mal educado por não passar o cigarrinho esperto pelos lábios.

Amanhã, vou tentar continuar assim.


Para ser sincero, espero continuar assim nos próximos 30 segundos.

Ou até descobrir um cigarro. Será que a blogspot me deixa ter um blog chamado "desmame"??

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